III - «apareceu primeiro a Maria de Magdala»
Peço, de novo, para escurecerem a
sala. Alguém vem posicionar a mesma tela circular e, outra vez, volto a colocar
um slide no projetor.
Novamente o rosto. «Eis o homem!»,
penso.
Ao meu lado, tu mandas servir um
vinho de aroma limpo e macio na boca. Prova-lo primeiro e estendes-me um
cálice.
Tudo isto me encanta e faz-me
pensar-te como se tu fosses o princípio e o fim de todas as coisas e até do
mundo. Disseste-me «bebe»? Sim,
talvez. Agarrei o cálice e aproximei-o dos lábios, mas detive-me a pensar
novamente em ti. Considerei, depois, que era ridículo. Para quê pensar-te, se
tu estavas ao meu lado? Sim. O certo
era olhar-te e tocar-te e ter-te; se eu o desejasse – se tu o desejasses.
- Maria!
- Sim.
As tuas palavras sempre se reduziam
a uma palavra e isso era apenas o reflexo de uma segurança perfeita e da mais
completa determinação sobre todos os assuntos e sobre todas as coisas. E isto
era sempre absolutamente certo; até mesmo quando o que tinhas a dizer era o
mais absurdo e inaudível ou mesmo pecaminoso pensamento. Mas nunca desistias,
não te deixavas abater. Num mesmo momento de raiva, recobravas a energia; num
mesmo ato de violência e fúria e agressão, quebravas a luta; num mesmo
instante de mentira e de intriga, descobrias a verdade. Olhavas-te a ti própria
a igual distância de uma multidão inimiga e tinhas a capacidade de te perdoares
e de te reaproximares de ti. Por tudo isto, como podia eu também não te amar e
não te querer e não te desejar? Tudo quanto te perdoei foi porque tu mesma a ti
própria o perdoaste. E tanto quanto te amei foi porque tu a ti própria te
amaste. Ah!, apetecia-me dizer-te o tanto quanto te quero; mas, em vez disso,
pergunto-te outra coisa.
- O que farias se eu desaparecesse?
Se não me visses nem me encontrasses mais? Choravas?
- Sim.
Claro. O maldito sim das tuas respostas. A tua tenacidade
e a tua violência forte contidas nesses teus sins. Sorrio, pecados?; não, pois só sempre te posso perdoar; e,
porquê?, apenas pela verdade de que tu és feita, pela verdade com que te
constróis, pela verdade que há em cada um dos teus sins. Claro, basta-te dizer o meu nome para me teres. Sabes
perfeitamente como contornar curvas e precipícios. Mesmo quando aceitas tudo
servilmente, com obediência, sem dúvidas nem hesitações, e me segues, há a
força irreverente do teu carácter a marcar cada um dos teus gestos e a cada um
deles eu me prendo. Quase me apetecia pedir-te que dissesses «não». Mas não
quero. É o «sim» a tua medida, é o «sim» que te fica bem, é esse que tu
aceitas à margem mesmo do esforço de compreensão.
-
Maria, quando eu me for, perder-me-ás. Embora eu seja sempre contigo. Um só. Um
mesmo. Um único.
- Sim.
Não
há ameaça que te suscite insegurança? Penso que poderia mentir e assustar-te,
mas não tenho coragem, porque, se te olho, vejo apenas o que realmente és:
muito frágil, muito esguia, muito ténue; apenas posso, e sempre,
tranquilizar-te.
-
Serás sempre a primeira a quem eu me dirigirei, mulher.
- Sim.
Sim.
Finalmente um «sim» que me conforta. Coloco o cálice em cima da mesa. Quero
tocar o teu rosto e faço-o suavemente, numa carícia simples. Ter-te-ia dito,
«Maria», se tu antes não te tivesses antecipado e aceite com um «sim». Por isso, quando nos abraçámos,
eu apenas te disse, apontando em direcção à imagem:
- Eis
o homem!
Nota: na leitura do texto, deve ser feita a homofonia com a palavra
inglesa «sin».
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