I – «e o nome da virgem era Maria»

        Peço para escurecerem a sala primeiro. Alguém posiciona a tela branca, circular, mesmo à minha frente, e coloco um slide no projector. Um único, de facto. Apenas e tão só, sempre, aquele. A imagem é a de um rosto e nem sequer sei se é igual ao negativo que instalei no projetor – por inércia, nunca confirmei qual é o diapositivo que retiro da caixa; contudo deve ser sempre o mesmo, porque a imagem sempre se repetiu igual.

            «Eis o homem!», penso para comigo. E, nem sei bem porquê, mando servir dois chocolates quentes. Tu estás ao meu lado. Chamo-te.

            - Maria!

            Então, após um breve momento, que não consigo contabilizar, o teu rosto simples vira-se para mim.

            - O teu chocolate.

            Molhas os lábios nesta mistura aromatizada com canela e, depois, provas um ligeiro gole. Sorris de satisfação – o quente, o doce – e o que te inebria é apenas a sensação do mistério que experimentas. Estás feliz! Sente-se a felicidade de seres quem és e o que és. Chamo-te de novo.

            - Maria! 

            Nem me olhas. Sabes o significado profundo de eu dizer o teu nome, por isso não te moves. Basta ouvires e saberes e seres tudo o que ele contém. Olhas, sempre incrédula, para a projeção do rosto; sussurras umas palavras inaudíveis, como se duvidasses de mim, de ti ou da própria imagem; mas, depois, tocas no teu ventre e esse gesto tranquiliza-te. Pensarás, tal como eu a teu lado, que o rosto que adormece dentro de ti é igual àquele que está projetado na tela circular. Distrai-te pensares isso e, por isso, não ouves que te chamei mais uma, duas, três vezes. Compreendo o teu silêncio e a tua ausência. Aguardo e repito uma vez mais o teu nome.

            - Maria!

            Voltas-te, enfim, para mim. Pergunto-te em que pensas, porque te distrais sempre assim tão constantemente, porque não me ouviste, se já te chamara tantas e tantas vezes…

            - Estava a pensar.

            Não me revelas o segredo; mas eu sei-o. O teu ventre cresce; há uma eternidade que o teu corpo se reconstrói, mas tu pareces até ignorá-lo. Pareces fazer de propósito, como se quisesses desconhecer o que se passa em ti. Contudo, sabe-lo mais profundamente do que ninguém. E, por isso, mais profundamente também, subvertes a atenção sobre ti própria em direção à imagem que se projeta. Dizes:

            - Engraçado, não? O rosto é completamente dourado! 

Corrijo-te dizendo que não é dourado, é sépia. O slide é muito velho, perdeu as tonalidades nítidas de preto e branco, mais talvez à conta da humidade do que por qualquer outra coisa. Mas, teimando, como sempre, insistes.

- Completamente dourado! É interessante. Será do efeito das luzes, ou será o cinzelado de ouro da moldura que circunda a tela? Tudo parece mágico. Incerto, e magistralmente confundido. O rosto, a tela, a moldura. Tudo aparentemente uma só coisa: a imagem do rosto.

Desnecessário será dizer-te tudo de novo. Não é ouro, é sépia. É uma imagem sépia. A humidade corroeu-a, transformou-a, criou nela uma nova impressão e, curiosamente, creio, fez com que ficasse mais bela. Assim como tu, acrescento, para te lisonjear. Eternamente feminina – ideal…

Interrompes-me a rir.

- Então não existo. Um ideal! Não existo! É certo!

Penso que és insuportável. Mas digo-te apenas que tu és a verdade de que és feita. Que és o limite último e primeiro de todas as coisas. Que és a harmonia rara da luz e das sombras. Que és minha. Que és mulher.

Acrescentas:

-  Mais simples será dizeres: tua mulher. 

Há uma subtil ironia na tua voz. Compreendo-a. Rejeitas o sentimento de pertença. Recusas a sujeição do teu sexo. Contudo, quaisquer que sejam as palavras que forem ditas, tu sabes, e eu sei, que nunca pertencerás senão a ti mesma – e com isso à humanidade inteira. Num ato de vontade incompreensível, quiseste ser a mãe dos homens e fazeres de todos eles teus filhos. E tão perfeitamente o fazes que escapas ao ridículo da imagem de uma parideira universal. Digo, por isso, ternamente, muito baixinho, que te amo, ao pronunciar em silêncio o teu nome.

            Então, o ideal de ti começa a desvanecer-se até desaparecer por completo. Fica no ar, apenas, um choro-riso infantil, que se assemelha a um som marítimo produzido por baleias e golfinhos no fluxo-influxo das ondas nas correntes dos oceanos. Torna-se desnecessário pensar sequer o teu nome. Ele permanece registado no mais profundo de mim, mulher. E, então, digo, de mim para mim, só pensando, «minha Maria».









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