II - «chegou uma certa mulher que trazia um frasco de alabastro, com perfume de nardo puro»
Nessa noite, andávamos à deriva pelas ruas da cidade. Tínhamo-nos desviado do nosso trajeto habitual, desconhecendo que esta simples quebra de rotina nos levaria a descobrir-te.
E assim foi, num cruzamento, num passeio, mesmo junto à estrada, aí te encontravas tu. Parámos. Tu paraste. Olhámos. Tu olhaste. Ou talvez tenha sido ao contrário. Não sei. Éramos quatro ou cinco mulheres e tu estavas sozinho, abandonado, numa confluência de ruas, no meio da cidade, no espaço de trajeto de todos nós – estavas perdido, mas parecias indicar um caminho; tinham-te despojado, mas, de algum modo, conservavas uma verdade; parecias meio morto, mas, absurdamente, recriavas o sentido de uma vida. Não sei já qual de nós foi a primeira a te recolher, assim, exatamente como te encontravas à nossa frente: esfarrapado, sujo, exausto. Ninguém poderia dizer que idade tens. Talvez sessenta talvez oitenta anos. A sujidade e a barba escassa e mal feita não permitiam determinar o teu tempo de vida.
Transportámos-te na carrinha e, na enfermaria, foste tratado. Despi-te, lavei-te, alimentei-te. Deixei-te num sono profundo e ninguém sabia por que não falavas. Todos te olhavam com espanto, até que alguém disse, «- Eis o homem.»; e soube, então, só nesse instante, apenas, que eras o meu filho. Aquele que eu tinha concebido e gerado e acolhido. Quase me espantei por te ver assim tão velho e tão diferente do menino que tinha estado nos meus braços. E que, em todos os momentos, quer os de presença quer os de ausência, eu tinha acarinhado e protegido. Não procurei perceber porque é que eu continuava jovem e forte e robusta e tu tinhas sobre ti o peso de uma idade que eu desconhecia e que indeterminava a tua existência. Mas, saber quem tu eras, foi o impulso suficiente para te tomar de novo e te aconchegar junto ao peito. Trauteei aquela melodia antiga com que te adormecia e a mim mesma me embalava e balouçava-me ligeiramente, de encontro a ti, no leito, tentando soerguer o teu corpo frágil e pesado.
Nada dizias, mas eu parecia saber tudo quanto te acontecera. Nem uma palavra se te ouvia, mas eu estava certa de tudo quanto sentias. Gemes, agora. Parece-me ouvir-te gemer. Observo-te com atenção e entendo a dor e o sofrimento, que escorre da tua testa e da tua cabeça, ambas cobertas de chagas e crostas; o rosto desfigurado que se contorce, quase sem a força da vida. Deixo o teu corpo repousar sobre o leito e vou ao armário dos medicamentos e escolho um óleo para acalmar a tua dor. A tua dor e o meu sofrimento. Então, muito débil, oiço a tua voz, como se fosse a primeira vez em que me chamaste, não quando disseste «mãe», mas quando, brincando, pronunciavas o meu nome.
- Maria…
A tua voz tinha a candura e a docilidade de um chamamento infantil. Creio até que pronunciaste mal, incapaz de fazeres rolar o som palatal mais forte. Corrigi-te, repetindo eu, sílaba a sílaba, a palavra e incitando, «- Assim… diz… Maria…». E, enquanto isto, suavemente, deixava escorrer o óleo aromatizado de essências naturais pela tua testa e, ligeiramente, para te acalmar, ia passando a minha mão pelos sulcos rugosos e crestados da tua pele. Redesenhava a tua face. Recriava o teu rosto. E tu repetias, baixinho, devagar, já quase corretamente, o nome que te conforta.
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